Duas histórias...
Estamos no mês de dezembro de 2000.
Inicia-se a segunda semana do último mês do ano. Muitas famílias, grupos de
amigos, departamentos de RH`s andam a mil com os preparativos para as
confraternizações de fim de ano. Já alguns jovens encontram-se na reta final de
estudos para o vestibular. Nesta barca estão Helena e Capitu. E além da
coincidência de terem nomes de personagens de Machado de Assis, ambas
concorrerão a uma vaga do curso de Direito, na mesma faculdade, que tem seleção
marcada para o próximo fim de semana; e ainda frequentam o mesmo cursinho.
Jovem de classe média alta, no auge dos seus 18 anos,
Helena é a única filha de um casal de advogados muito bem conceituados. A
garota sempre teve uma vida confortável e frequentou os melhores colégios da
região. Fez aulas de balé, natação e línguas estrangeiras. Sempre teve acesso a
todas as atrações culturais da cidade. Os pais nunca pouparam esforços para
conceder tudo de melhor a sua filha. Mas o que Helena curtia mesmo era sair por
aí, zoar com a galera e namorar! E este último verbo, para ela, uma loirinha de
impactantes olhos azuis, com ares de Lolita do Nabokov, nunca foi difícil “conjugar”...
Pretendentes não faltavam!
De uma prole de 06 filhos, Capitu era a mais velha,
apesar dos parcos 17 anos. Não se podia dizer que era feia, mas seu corpo
franzino dava-lhe aspecto de uma desnutrida garota de pouco mais de 13 anos. Naquele
mês de dezembro, completavam-se dois anos do assassinato de seu pai, que se envolveu
em uma briga de bar e foi morto de forma violenta. A tragédia abalou a pobre
moça que se viu com a obrigação de ajudar a mãe no sustento de casa. Ela que
sempre foi muito estudiosa, o que lhe garantiu inclusive bolsa de estudo no
cursinho Brás Cubas, o melhor da cidade, jurou para si mesma que estudaria
ainda mais e entraria na faculdade de direito para, quem sabe um dia, ser
Promotora de Justiça e poder colocar na cadeia pessoas como o assassino do seu
pai, e, ainda, ajudar sua família a ter uma vida mais confortável.
É chegado o dia da prova. Em passos largos, Helena é a
última a chegar à sala de provas. Além de apressada, encontra-se receosa,
afinal ela bem sabe que durante o ano destinou boas horas a festas e bate-papos
intermináveis com amigas ao telefone, quando deveria estar perante os livros.
Apesar de não ser das piores alunas, ela compreende que pela estrutura que tem
a sua disposição seu rendimento poderia ser muito melhor. Já Capitu foi a
primeira a chegar ao local de provas e já se encontra aguardando na sala de
provas. Muito nervosa, tem na memória a figura de sua pobre mãe e de seus
irmãos. Lembra-se da promessa que fez, sendo que neste momento recai sobre si
um medo de fracassar, e de que todo o esforço possa ter sido em vão... Vem à
mente a figura do seu pai.
Helena, ainda à porta, observa a sala e vê que o último
lugar vago é bem ao lado de uma garota que ela lembra já ter visto pelos
corredores do cursinho. Lembrou que Capitu era o nome dela. Lembrou, ainda, que
de longe, e sem motivo aparente, nutria certa simpatia por aquela menina,
apesar de nunca ter tido contato com ela. E até pensou que, quem sabe, não é o
destino lhe ajudando, afinal ela sabe que aquela garota sempre foi a melhor
aluna do cursinho. Então, quem sabe, caso lhe faltasse algum assunto à memória,
não lhe custaria nada relembrar observando o caderno de respostas daquela
menina inteligente, mas de poucos amigos.
Capitu ficou observando Helena durante o trajeto que
esta fez da porta de entrada até a cadeira que ficava ao lado da sua. Sempre
achou aquela moça muito bonita, e admirava o modo elegante como se vestia. E
inclusive, em alguns momentos de fraqueza, coincidentemente sempre que suas
“feridas” eram castigadas, não foi possível evitar um pouco de inveja...Tal
momento de contemplação durou pouco tempo. Logo tocou o sinal para o início das
provas, os fiscais repassaram as instruções e a prova começou.
Helena, bastante nervosa, respondia a prova de forma
receosa, encontrando dúvidas no momento de escolher a alternativa correta. Já
Capitu pecava mais pelo zelo de ler e reler as alternativas, mesmo que já
tivesse chegado a uma conclusão acerca de qual marcar. Helena encontrava-se
inquieta, vacilante e insegura quanto à possibilidade de ser aprovada. Capitu
estava absorta em seus pensamentos, concentrada na sua tarefa e, passado o
nervosismo inicial, já sentia certa segurança de que seria aprovada.
Capitu ajeita-se para entregar sua prova ao fiscal
quando observa que Helena encontra-se com dificuldade em responder a última
questão. Num gesto que Capitu não soube o porquê, concedeu o único espaço
durante todo o decorrer da prova para que Helena observasse o seu caderno de
questões, e, concomitantemente, apontou a alternativa “D” como sendo a correta.
Helena, inicialmente assustada, agradeceu com um sorriso disfarçado, apesar de
no mesmo instante ter sido tomado por sentimento de desprezo por aquela garota
que em momento algum deu chance para que seu plano emergencial fosse posto em
prática. Aquela foi à única questão que conseguiu pescar!
Dia do resultado do vestibular. Helena, bastante
agitada, tenta conseguir informações com amigos e amigas em busca da lista
oficial. Capitu ouve atentamente a divulgação da rádio local. São divulgados os
primeiros informes, e a mãe de Capitu chora de alegria ao ouvir o Reitor
anunciar o nome de sua filha como sendo a primeira colocada no curso de
Direito, dentre 50 vagas ofertadas. Depois de tantas tristezas, aquele é um
momento ímpar de alegria naquela pobre família. Já Helena fica cabisbaixa ao
saber que ficou na 51ª posição. Sente-se culpada, afinal se tivesse se dedicado
um pouco mais aos livros e menos aos bate papos e festas, talvez tivesse
conseguido, já que faltou tão pouco.
Chega o mês de março do ano seguinte e, logo após os
calouros realizarem suas matrículas, a Faculdade divulga relação de segunda
chamada. Helena vibra com a sorte que lhe voltava a sorrir. E não poderia
deixar de vibrar, afinal sobrará uma única vaga. Ela foi a única candidata
chamada na segunda lista. Somente agora, então, Helena se dá conta da importância
daquela única questão repassada por aquela garota estranha, acerca da qual sabia
apenas que se chamava Capitu, pois foi exatamente aquele um ponto a mais que
lhe garantiu a primeira posição de suplência na seleção, e sua convocação.
Helena formou-se no ano de 2005. Neste mesmo ano
casou-se com Machado, um colega de turma. Entrou para a banca de advogados dos
pais, e hoje divide seu tempo entre os milionários processos de grandes
empresas e causas de pessoas pobres que não possuem condições de pagar os
serviços de um advogado. Já Capitu faleceu no dia que ia realizar sua
matrícula. Foi atropelada. Sua pobre mãe enlouquecera após a tragédia, e hoje
vive num manicômio. De seus irmãos, não se tem notícias.