quinta-feira, 21 de junho de 2012

Duas histórias...


Duas histórias...

            Estamos no mês de dezembro de 2000. Inicia-se a segunda semana do último mês do ano. Muitas famílias, grupos de amigos, departamentos de RH`s andam a mil com os preparativos para as confraternizações de fim de ano. Já alguns jovens encontram-se na reta final de estudos para o vestibular. Nesta barca estão Helena e Capitu. E além da coincidência de terem nomes de personagens de Machado de Assis, ambas concorrerão a uma vaga do curso de Direito, na mesma faculdade, que tem seleção marcada para o próximo fim de semana; e ainda frequentam o mesmo cursinho.

Jovem de classe média alta, no auge dos seus 18 anos, Helena é a única filha de um casal de advogados muito bem conceituados. A garota sempre teve uma vida confortável e frequentou os melhores colégios da região. Fez aulas de balé, natação e línguas estrangeiras. Sempre teve acesso a todas as atrações culturais da cidade. Os pais nunca pouparam esforços para conceder tudo de melhor a sua filha. Mas o que Helena curtia mesmo era sair por aí, zoar com a galera e namorar! E este último verbo, para ela, uma loirinha de impactantes olhos azuis, com ares de Lolita do Nabokov, nunca foi difícil “conjugar”... Pretendentes não faltavam!

De uma prole de 06 filhos, Capitu era a mais velha, apesar dos parcos 17 anos. Não se podia dizer que era feia, mas seu corpo franzino dava-lhe aspecto de uma desnutrida garota de pouco mais de 13 anos. Naquele mês de dezembro, completavam-se dois anos do assassinato de seu pai, que se envolveu em uma briga de bar e foi morto de forma violenta. A tragédia abalou a pobre moça que se viu com a obrigação de ajudar a mãe no sustento de casa. Ela que sempre foi muito estudiosa, o que lhe garantiu inclusive bolsa de estudo no cursinho Brás Cubas, o melhor da cidade, jurou para si mesma que estudaria ainda mais e entraria na faculdade de direito para, quem sabe um dia, ser Promotora de Justiça e poder colocar na cadeia pessoas como o assassino do seu pai, e, ainda, ajudar sua família a ter uma vida mais confortável.

É chegado o dia da prova. Em passos largos, Helena é a última a chegar à sala de provas. Além de apressada, encontra-se receosa, afinal ela bem sabe que durante o ano destinou boas horas a festas e bate-papos intermináveis com amigas ao telefone, quando deveria estar perante os livros. Apesar de não ser das piores alunas, ela compreende que pela estrutura que tem a sua disposição seu rendimento poderia ser muito melhor. Já Capitu foi a primeira a chegar ao local de provas e já se encontra aguardando na sala de provas. Muito nervosa, tem na memória a figura de sua pobre mãe e de seus irmãos. Lembra-se da promessa que fez, sendo que neste momento recai sobre si um medo de fracassar, e de que todo o esforço possa ter sido em vão... Vem à mente a figura do seu pai.

Helena, ainda à porta, observa a sala e vê que o último lugar vago é bem ao lado de uma garota que ela lembra já ter visto pelos corredores do cursinho. Lembrou que Capitu era o nome dela. Lembrou, ainda, que de longe, e sem motivo aparente, nutria certa simpatia por aquela menina, apesar de nunca ter tido contato com ela. E até pensou que, quem sabe, não é o destino lhe ajudando, afinal ela sabe que aquela garota sempre foi a melhor aluna do cursinho. Então, quem sabe, caso lhe faltasse algum assunto à memória, não lhe custaria nada relembrar observando o caderno de respostas daquela menina inteligente, mas de poucos amigos.

Capitu ficou observando Helena durante o trajeto que esta fez da porta de entrada até a cadeira que ficava ao lado da sua. Sempre achou aquela moça muito bonita, e admirava o modo elegante como se vestia. E inclusive, em alguns momentos de fraqueza, coincidentemente sempre que suas “feridas” eram castigadas, não foi possível evitar um pouco de inveja...Tal momento de contemplação durou pouco tempo. Logo tocou o sinal para o início das provas, os fiscais repassaram as instruções e a prova começou.

Helena, bastante nervosa, respondia a prova de forma receosa, encontrando dúvidas no momento de escolher a alternativa correta. Já Capitu pecava mais pelo zelo de ler e reler as alternativas, mesmo que já tivesse chegado a uma conclusão acerca de qual marcar. Helena encontrava-se inquieta, vacilante e insegura quanto à possibilidade de ser aprovada. Capitu estava absorta em seus pensamentos, concentrada na sua tarefa e, passado o nervosismo inicial, já sentia certa segurança de que seria aprovada.

Capitu ajeita-se para entregar sua prova ao fiscal quando observa que Helena encontra-se com dificuldade em responder a última questão. Num gesto que Capitu não soube o porquê, concedeu o único espaço durante todo o decorrer da prova para que Helena observasse o seu caderno de questões, e, concomitantemente, apontou a alternativa “D” como sendo a correta. Helena, inicialmente assustada, agradeceu com um sorriso disfarçado, apesar de no mesmo instante ter sido tomado por sentimento de desprezo por aquela garota que em momento algum deu chance para que seu plano emergencial fosse posto em prática. Aquela foi à única questão que conseguiu pescar!

Dia do resultado do vestibular. Helena, bastante agitada, tenta conseguir informações com amigos e amigas em busca da lista oficial. Capitu ouve atentamente a divulgação da rádio local. São divulgados os primeiros informes, e a mãe de Capitu chora de alegria ao ouvir o Reitor anunciar o nome de sua filha como sendo a primeira colocada no curso de Direito, dentre 50 vagas ofertadas. Depois de tantas tristezas, aquele é um momento ímpar de alegria naquela pobre família. Já Helena fica cabisbaixa ao saber que ficou na 51ª posição. Sente-se culpada, afinal se tivesse se dedicado um pouco mais aos livros e menos aos bate papos e festas, talvez tivesse conseguido, já que faltou tão pouco.

Chega o mês de março do ano seguinte e, logo após os calouros realizarem suas matrículas, a Faculdade divulga relação de segunda chamada. Helena vibra com a sorte que lhe voltava a sorrir. E não poderia deixar de vibrar, afinal sobrará uma única vaga. Ela foi a única candidata chamada na segunda lista. Somente agora, então, Helena se dá conta da importância daquela única questão repassada por aquela garota estranha, acerca da qual sabia apenas que se chamava Capitu, pois foi exatamente aquele um ponto a mais que lhe garantiu a primeira posição de suplência na seleção, e sua convocação.

Helena formou-se no ano de 2005. Neste mesmo ano casou-se com Machado, um colega de turma. Entrou para a banca de advogados dos pais, e hoje divide seu tempo entre os milionários processos de grandes empresas e causas de pessoas pobres que não possuem condições de pagar os serviços de um advogado. Já Capitu faleceu no dia que ia realizar sua matrícula. Foi atropelada. Sua pobre mãe enlouquecera após a tragédia, e hoje vive num manicômio. De seus irmãos, não se tem notícias.